Não é praxe de Século Diário noticiar fatos relacionados a seus profissionais. Entretanto, a grande repercussão do livro Memórias de uma guerra suja, dos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, levou a equipe do jornal a “convencer” o diretor de jornalismo de SD a dar uma “palhinha” sobre a obra. Na entrevista a seguir, Rogério Medeiros conta algumas passagens sobre o processo de apuração do livro-reportagem. Durante quase três anos, o jornalista se reuniu com o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) Cláudio Guerra para extrair os depoimentos que deram origem à publicação.
Medeiros revela, por exemplo, que precisou usar toda a sua experiência de repórter, acumulada nesses mais de 40 anos de profissão, para convencer o ex-delegado a entregar os detalhes dos episódios revelados no livro. “Houve momentos em que ele insistiu em manter em sigilo a identidade de policiais que participaram das ações. Nesse momento, fui incisivo. Disse: ‘Ou você conta a história como ela é, já que você disse que tem um compromisso com Jesus, até para o seu discurso ser coerente, ou não poderemos avançar. Preciso que você entregue tudo’. Ele acabou concordando. Mas não foi fácil convencê-lo em alguns momentos”, recorda Medeiros.
- Século Diário: Durante o seu trabalho de apuração houve alguma passagem relevante que, por algum motivo, o ex-delegado Cláudio Guerra pediu para não incluir no livro?
- Rogério Medeiros: Cláudio Guerra falou sobre um assassinato bravo que ele conhecia, mas que não teve participação. Foi um assassinato em Jacarepaguá, na Praça Sentinela, no Rio de Janeiro. Esse crime teria ocorrido no dia 27 de outubro de 1973. Integrantes do PCBR [Partido Comunista Brasileiro Revolucionário] foram metralhados e, em seguida, carbonizados dentro de um fusca. Ele não queria incluir esse episódio no livro.
- Havia algum motivo especial?
- Ele disse que o crime fora executado por membros de sua equipe, mas frisou que não participara do crime. Disse-me: “Só quero incluir no livro os crimes dos quais participei”. Quando fomos investigar, descobrimos que nesse episódio foram mortos quatro militantes do PCBR: Ranúsia Alves Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Ramires Maranhão do Valle e Vitorino Alves Moitinho. Os corpos dos três rapazes foram carbonizados dentro do carro. Segundo Guerra, a moça conseguiu se arrastar para fora do veículo e foi a única a não ter o corpo queimado. [No livro Guerra relata: “Foi Perdigão (coronel Freddie Perdigão Pereira) que fez questão de acabar com ela, a tiros. E ria enquanto atirava. Ria alto”].
- Mas há outras passagens no livro das quais Guerra também não participou, mas que ele faz questão de registrar...
- Ele não queria incluir os assassinatos. Os outros relatos se referem a fatos sem mortes, como, por exemplo, o sequestro do empresário Abílio Diniz. Nesse episódio, ele conta que a ‘irmandade’ colocou os panfletos do Partido dos Trabalhadores no cativeiro de Diniz. [“Nossa irmandade, claro, era contra o PT e contra Lula. Quero deixar claro que essa história eu ouvi de minha equipe e policiais que foram me visitar quando estava preso na Polinter no Rio de Janeiro (...)].
- No livro, em repetidos momentos, Guerra faz questão de frisar que nunca torturou ninguém. Ele reafirma que seu ‘trabalho’ era executar. Alguns familiares e amigos das vítimas, citadas por Guerra no livro, admitiram que nada sabiam sobre o ex-delegado do DOPS. Inclusive ressaltaram que Guerra não consta nas listas de torturadores da ditadura militar.
- Isso é coerente com o relato de Cláudio Guerra. Ele realmente fez questão de repetir que não torturou, por isso ele não consta na lista de torturadores. O negócio dele era execução. Os torturadores acabavam mostrando o rosto e, mais tarde, acabavam sendo identificados pelos sobreviventes. Guerra era um assassino frio que não deixava rastro. As pessoas executados por ele não viveram para contar. Inclusive, essa qualidade de não deixar rastro era valorizada pelos militares.
- No livro, os relatos dos crimes em primeira pessoa passam a ideia de que Cláudio Guerra é um homem frio e calculista. Durante a apuração, cara a cara com Guerra, a sensação também é essa?
- Não tive essa sensação. A sensação que tive é a de que ele vivia para as execuções. Esse era o ofício dele. Ele era um matador. A trajetória dele é extremamente reprovável. Ele não matou apenas para os militares, matou também para as elites rurais, para elites políticas, empresariais.
- Durante a apuração parece que houve uma polêmica entre você e Marcelo Netto para chegar a um número sobre o total de vítimas de Guerra. Cerca de uma centena de pessoas é o número indicado por vocês. Como chegaram a esse número?
- Existe muita confusão sobre esse número. É preciso esclarecer que esse número é referente a toda a trajetória criminosa de Cláudio Guerra. Como disse, ele não matou só para os militares, mas também para outros grupos. É preciso lembrar que ele passou 40 anos matando gente. Só em uma única empreitada no noroeste do Espírito Santo, na divisa com Minas Gerais, em poucos meses, Guerra e sua equipe mataram 40 pessoas. Uma centena de vítimas é até um número modesto. Nessa passagem, dessas 40 mortes, eles partiram com o pretexto de executar jagunços, mas na verdade estavam eliminando também lideranças camponesas que lutavam por terras e esbarravam nos interesses das elites rurais. Mais tarde, esse grupo de camponeses perseguidos pelas elites rurais daria origem ao MST.
- No eco da repercussão do livro, muita gente tem se perguntado por que Cláudio Guerra teria decidido fazer estas revelações somente agora? A questão religiosa parece ter sido decisiva para Guerra contar tudo?
- Sem dúvida. Especialmente a partir do momento em que ele passou a se dedicar ao estudo da Bíblia. Ai entre também o Perly Cipriano [Subsecretário estadual de Direitos Humanos]. Muitas vezes ele me acompanhou nos depoimentos de Guerra. O Perly mostrava a ele a importância de revelar essas memórias. Ele fazia questão de lembrar ao ex-delegado que as revelações eram importantes para os familiares e amigos das vítimas. Mas a Bíblia teve um papel fundamental na decisão de Guerra. Durante o tempo em que ficou no cárcere, Guerra estudou muito a Bíblia, tanto é que se tornou diácono e mais recentemente foi elevado à condição de pastor da Assembleia de Deus. Nesses diálogos com Perly há um fato interessante. Guerra chamava Perly de senhor, em sinal de respeito, pois reconhecia que a situação havia mudado. Quando se referia a passagens da história, Guerra, naturalmente, colocava Perly do “outro lado”. Isso para ele é muito claro, ele falava ‘nós’ e vocês, deixando a entender que ele e Perly agiam em lados opostos.
- Em 2009, quando a advogada de Cláudio Guerra te procurou para dizer que o cliente dela gostaria de falar contigo você imaginou qual seria o assunto a ser tratado?
- Na hora, fiquei surpreso com o convite, mas imaginava que o assunto estava relacionado à antiga reportagem que fiz 30 anos atrás e que ajudou a colocar Guerra na prisão. Essa reportagem, feita para o Jornal do Brasil, desconstruiu a imagem imaculada de Guerra, que era tido como o implacável combatente da criminalidade no Espírito Santo. A matéria relatava mais de três dezenas de execuções de queima de arquivo que Guerra fizera a mando das elites capixabas. Essas revelações tiraram de Guerra a imagem de defensor da sociedade capixaba, que passou a ser reconhecido como chefe do crime organizado. As informações da reportagem também puseram fim à era em que transformou seus assassinatos no Espírito Santo, e parte de Minas, em espetáculos de justiçamento.
- Mas quando soube que Guerra queria lhe confidenciar todos esses fatos você tinha a dimensão da história que teria nas mãos?
- Não tinha a dimensão. Ele chega e diz pra mim: “Você deve estar estranhando o meu convite. Afinal, você foi o cara que me denunciou”. Em outras palavras, ele quis dizer que eu ajudei a colocá-lo na cadeia. Entretanto, Guerra admitiu que as minhas matérias, no geral, estavam corretas. Ele ressaltou, porém, que o conteúdo só não poderia ser considerado integralmente correto por conter alguns senões.
- Ele disse quais eram os senões?
- Não. Nunca perguntei e ele também preferiu não entrar nesse detalhe. Mas eu não tinha dimensão das revelações. Eu imaginava que essas ações para os militares eram casos isolados, mas não esse grandioso conjunto. Com o passar do tempo, fui tendo a dimensão desse conjunto. Houve momentos em que ele insistiu em manter em sigilo a identidade de policiais que participaram das ações. Nessa hora fui incisivo. Disse: ‘Ou você conta a história como ela é, já que você disse que tem um compromisso com Jesus, até para o seu discurso ser coerente, ou não poderemos avançar. Preciso que você entregue tudo’. Ele acabou concordando. Mas não foi fácil convencê-lo em alguns momentos. Passei três anos entrevistando Guerra. O Marcelo Netto deve ter participado dos últimos seis meses das entrevistas. O Marcelo ficou encarregado de se dedicar mais ao contexto histórico das informações reveladas por Guerra. Esse trabalho foi importante, porque na hora em que Marcelo vinha com o contexto dos fatos, Guerra se lembrava de outras passagens. Uma informação puxava a outra, e apareciam novas revelações. Esse exercício ajuda a reavivar a memória de Guerra.
- Deve ter sido difícil para Guerra, que sempre foi fiel aos militares, fazer essas revelações, principalmente quando ele faz acusações sérias a militares que ainda estão vivos.
- É verdade. Quando ele vai para o cárcere, estava convicto em manter toda essa história sob sigilo, em lealdade aos militares. Afinal, Guerra reconhecia que os militares também tinham sido leais com ele. Então ele dizia para si mesmo: ‘Pela minha boca, ninguém saberá de nada sobre os militares’. Mas esse silêncio acabou sendo quebrado em nome desse novo compromisso que ele firmara com Jesus. Por ai você percebe o quanto a questão religiosa pesou na sua decisão de revelar os fatos.
- Matéria publicada no portal iG, repercutindo o livro, informa que o coronel-aviador reformado Juarez de Deus Gomes da Silva e o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra pretendem processar Guerra. No livro, Guerra envolve os dois coronéis e outros militares na morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury, titular da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo. Homem-forte da repressão durante a ditadura, Fleury morreu em maio de 1979, no litoral norte de São Paulo, supostamente após cair e bater com a cabeça em uma lancha que estava ancorada no Iate Clube de Ilha Bela. “Não conheço esse delegado nem sei que almoço foi esse [no restaurante Baby Beef, em São Paulo, onde teria sido tramada a morte de Fleury]. Não sei se esse delegado está recebendo dinheiro ou se é maluco”, questionou ao iG, o coronel Juarez. A mulher de Ustra ironizou as acusações de ex-delegado: “Daqui a pouco vão dizer que ele matou John Kennedy (presidente dos EUA)", disse Joseita Brilhante Ustra. Como você avalia essas reações?
- Só posso dizer que os depoimentos de Cláudio Guerra são muito consistentes. Por que o coronel Ustra não corre atrás do inquérito então para esclarecer as verdadeiras circunstâncias da morte de Fleury? Muita gente compartilha da opinião de que a morte de Fleury foi premeditada. O legista que assina o atestado de óbito, mesmo sem ter a autópsia, é Harry Shibata, que mantinha ligações estreitas com os militares [Em 2011, Shibata teria declarado à Revista Época, que recebeu ordens superiores para não autopsiar o corpo de Fleury]. O processo, que foi arquivado pelo promotor, continua em Ilha Bela. Por que então os acusados por Guerra não pedem a reabertura do caso para esclarecer essa história de uma vez? No livro, Guerra afirma que a autópsia não foi realizada para mascarar a verdadeira razão da morte de Fleury. Ele afirma que não havia água na pleura, condição para caracterizar o afogamento. Segundo Guerra, Fleury teria sido drogado e golpeado com uma pedra. Ainda há o fato de o inquérito para investigar a morte ter sido aberto antes dos fatos. A portaria inicial do inquérito é de 2 de abril de 1979, ou seja, um mês antes da morte de Fleury.
Estou pasmo. Parabens a Seculo Diario e AMAFAVV
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