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segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Primeiro as damas



O exame deu positvo: 2011 está grávido. E dele pode, talvez, quem sabe, nascer um Brasil melhor. As responsáveis por tal foram elas, as mulheres, donas de 2011, que podem ser a presidenta de um país ou trabalhadoras comuns como essas duas amazonas que apresentamos nesta matéria.

No choro ou no riso, elas nunca capitulam. Desde 1999, Maria das Graças Narcot luta 24 horas para condenar os carrascos de seu filho. No outro extremo, Zilda Antônia de Aquino fez de seu bar talvez o principal reduto cultural de Vitória em 2011.

Claro, ninguém é melhor que ninguém por nascer mulher (ou homem). Mas, perdoem os cavalheiros, 2011 teve um sabor diferente. Ah, se teve.

Coragem, teu nome é Maria


Eram 9h da última segunda-feira (19) e duas mães de olhos baixos e ombros caídos procuravam amparo. Uma era morena, de longos cabelos negros, jovem e bonita; a outra, uma idosa, negra, frágil e miúda. Sentada à frente delas, atenta a cada lamento, a cada apelo, estava outra mãe.

Negra, com pouco estudo e dona de um olhar firme em que faísca a indignação, aos 62 anos, Maria das Graças Narcot é uma mulher comum, mas não é uma mulher qualquer. Ela representa um facho de esperança para as mais de quatro mil mães reunidas em torno da Associação de Mães e Familiares de Vítimas da Violência (Amafavv), cuja sede abrigava a reunião daquela segunda. Como as duas mães acima – distantes na idade, mas vizinhas nos tormentos – muitas outras vêem em Maria das Graças a única salvação de seus rebentos.

O filho da mais jovem foi preso sob a acusação de participação no assassinato de um sargento em Cariacica. Segundo Maria das Graças, ele é inocente, há até testemunha. Mas enquanto isso ele divide uma cela com 15 facínoras de alto calibre. E, como se não bastasse, está sendo ameaçado de morte: segundo a lei do crime, ele é um “otário” por estar preso inocentemente, mesmo sem ter matado ninguém. E, segundo prescreve a lei, “otários devem morrer”. O filho da senhora está em regime semi-aberto há quatro meses, mas ainda não foi solto.      

O ano de 2011 foi especial para Maria das Graças, embora não exatamente alegre. Longe disso. Nos dias 3 e 4 de novembro, aconteceu o novo julgamento dos dois policiais militares acusados da execução de Pedro Narcot Filho. Erivelton de Souza Pereira, o Diabo Loiro, foi condenado a 18 anos de prisão em regime fechado e à perda da patente de soldado.

“O Diabo Loiro foi condenado a 18 anos e saiu do Fórum de Vitória rindo da minha cara, porque infelizmente nesse nosso país os assassinos matam e saem de mãos abanando, vêm para a rua e continuam trabalhando, aguardando o recurso em liberdade”, diz, duramente. Jeferson Zambalde Torezani, dono da arma usada para matar Pedro, foi absolvido. Mas o promotor recorreu da decisão: “É mais uma luta”.

O filho de Maria das Graças foi brutalmente assassinado em junho de 1999. Tinha 26 anos, uma disritmia cardíaca e morava com a mãe num apartamento à Rua Sete de Setembro (Centro de Vitória). Trabalhava como flanelinha nas redondezas. Pedro foi executado com mais de 22 tiros na mesma Rua Sete. Depois desse dia, Maria das Graças nunca mais soube o que era descanso. Nem paz. Em memória do filho, jurou colocar os assassinos atrás das grades.

Dez anos depois, em júri popular, houve o primeiro julgamento dos dois acusados. “Ali, mesmo com a arma, com balística positiva, os jurados absolveram os réus”, lembra. À época, o júri alegou falta de provas. Mas essa inexaurível Maria respondeu com uma greve de fome em frente ao Ministério Público Estadual (MPES). E conseguiu a proeza de anular um júri. Daí o novo júri, de novembro, ter sido, em parte, especial.

Mãe de seis filhos, dois dos quais já falecidos, Maria das Graças Narcot tem apenas o ensino fundamental. Fala “estrupar”, “seje” e omite os “s” dos plurais. Por isso, foi vilipendiada de forma covarde em dois episódios recentes. Primeiro quando, através da Amafavv, entrou com pedido de federalização do caso Alexandre Martins de Castro Filho. Muitos perguntaram onde ela poderia ter obtido ajuda para formular o pedido: uma forma nada sutil de questionar sua capacidade intelectual.

Outra experiência semelhante ela amargou durante o julgamento de novembro, quando foi humilhada pelos advogados de Diabo Loiro. Escancaradamente, mais uma vez vergastaram-lhe a alma com a pecha de analfabeta. Mas como qualquer outra, esta Maria é duríssima na queda. Inúmeras vezes já provou ser mais inteligente que muitos que falam e escrevem “estuprar” e “seja”. 

Pela manhã, ela fica na sede da Amafavv, um escritório modestamente mobiliado no 15° andar do edifício Martins de Freitas, no Centro. Não tem computador, nem acesso à internet – usa a do neto, em casa. Paga R$ 600 de aluguel graças ao auxílio de uma empresa. Fora isso, a Amafavv, reconhecida em 11 países, não recebe ajuda de ninguém. Ela diz que, se alguma empresa se dispuser, ela receberia de bom grado um novo computador e móveis, mesmo usados.

Na sua sala, senta-se de frente para uma foto pregada na parede: é Pedrinho, como ela sempre se refere ao filho. Apenas de bermuda, ele posou de pé, nas pedras da Ilha do Boi, à beira-mar. O cenário é deslumbrante, o dia parecia ensolarado. Lá atrás, riscando o céu, vê-se o traçado monumental da Terceira Ponte.

Atrás dela, na janela, revela-se uma vista das mais belas: contempla-se o mar, o céu, o porto, a Catedral. É um cenário que a conforta quando a vida fica ainda mais difícil. Antes de a entrevista começar, ela se disse “muito cansada”. Reflexo do ano que teve.

“2011 foi um ano de muita luta e sofrimento”, diz. “Os homicídios, eles falam que diminuiu, mas eu acho não diminuiu nada. Você vai no DML [Departamento Médico-Legal] tá lá, cheio de corpos. Isso é que dá para a gente saber, fora o que não dá... diminuíram, mas não é isso... E também, muito atendimento na associação, de vítimas da violência, de familiares de preso”, critica. 

Meia hora depois de iniciada esta conversa, lá se foi Maria das Graças Nacort para mais uma missão: levar aquelas duas mães à Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) e evitar que elas conheçam a mesma dor que faz 13 anos ela conhece.

É o tchan

Palavras da própria: Zilda não esperava que 2011 desse um “tchan” tão grande no bar que leva seu nome. De fato, um dos points do ano é o singelo estabelecimento encravado entre as ruas Graciano Neves e Sete de Setembro, no Centro de Vitória. Quem não foi ao, no mínimo ouviu falar do “Bar da Zilda”. 

É segunda-feira (19) à noite e a ampla área de chão cimentado, contíguo ao espaço onde efetivamente funciona o bar, está vazia. Segundas e terças não há expediente, são dias de merecido descanso. O estabelecimento funciona sempre de quarta a domingo, abre na hora do almoço e só fecha Deus sabe quando. Sentada numa cadeira de plástico, banho tomando, cabelos molhados, Zilda espera amigos e parentes para um amigo choco.

O Bar da Zilda nasceu há 14 anos. A iniciativa foi do marido. Há um detalhe curioso nessa história. Antes de mexer com os hedônicos prazeres da cevada, eles atuaram no ascético mundo do culto ao corpo. Traduzindo: ele e ela tinham uma academia de musculação. Trabalhavam na Rua Sete, onde era a Aliança Francesa.

O casal morava em Caratoíra, mas, aos poucos, foi tomando gosto pelos ares do Centro. A empatia era recíproca: eles gostavam da comunidade e esta deles. E tanto que, um dia, um amigo, dono de bar, disse não estar mais afim de tocar o negócio e ofereceu-o ao marido de Zilda. E não só o espaço: a estrutura toda viria junto. Assim nasceu o Bar da Zilda.

Apenas um depois, o marido faleceu, vítima de complicações cardíacas. “Aí eu falei assim: não vou parar, não. Agora que comecei isso aqui, vou continuar”, lembra. O bar funcionou por dois anos praticamente em frente ao endereço atual: no térreo de uma edificação localizada na esquina com a Graciano Neves.

Quando o dono pediu o imóvel de volta, Zilda cresceu os olhos para o espaço onde um dia existiu uma padaria. Daí para frente, o Bar da Zilda renasceu e só cresceu. Sagaz, Zilda percebeu que o povo ali gostava muito de samba – a Piedade é um dos principais redutos do gênero em Vitória. E, claro, pensou: por que não botar um samba ali? Mas ficou só pensando, pensando, pensando. Botar o samba que é bom, nada.      

A primeira ideia foi colocar uma seresta, iniciativa que repercutiu bem. O movimento, no entanto, enfraqueceu por dois motivos. Um, a violência e as brigas constantes no Morro da Piedade, que afugentaram a clientela. Dois, os pagodes que, finalmente, passou a oferecer aos domingos. Nessa o Bar da Zilda começou a fazer fama.

Depois de um ano, o pagode dos domingos fez um desembarque fascinante no maior show da Terra. Engrenou legal. A estreita e mal iluminada ruazinha entre a Rua Sete e a Graciano Neves fecha, tamanho o mar de gente que se forma. “Domingo aqui é show, virou point, a galera mesmo fala”, diz. O bar passou a oferecer pagodes aos sábados também, que, um ano depois de instituído, já começa a engrenar.

Zilda Antônia de Aquino é uma mulher negra de voz e sorriso simpáticos. Tem apenas uma filha, de 20 anos, fruto do primeiro casamento. Nascida em Colatina, mudou-se para Vitória em 1984. Morou com o irmão, mecânico, no Morro do Quadro até arrumar um emprego. Quando trabalhou de recepcionista numa academia nas imediações da Praça Costa Pereira, conheceu o pai de seu único rebento.

Hoje ela mora no Centro, ao lado do trabalho. Uma passagem comunica o lar ao bar. Ali aparece um dos principais personagens dos sambas da Zilda: Piti, cachorro da dona do bar. Ele é o vira-lata que, confinado atrás das grades frias do portão, contempla aquela explosão de alegria com sua indefectível cara de carente.

2011 foi um ano especialmente agitado, mas não trabalhoso: como ama o que faz, Zilda nem sente o peso da labuta. Os pagodes dos sábados e domingos bombaram, juntando gente dentro e fora do bar. E também foi o ano em que a juventude alegre e despenteada da Regional da Nair transformou o Bar da Zilda em seu terreiro oficial. 

Formado por jovens de classe média, em sua maioria brancos de vinte poucos ou vinte e muitos anos, cursando Faesas, UVVs ou Ufes, ou mesmo já formados pelas mesmas instituições, o grupo canta desde Corre e Olha e Céu até Não Era Amor/ Era Cilada, cilada, cilada, o apedrejado pagode noventista do grupo Molejo. Tanto sucesso reconfigurou o perfil do público habituado a aparecer nos baticuns da Zilda.

“Tá vindo um público mais jovem, gente de outros bairros que achava que o Centro era um bicho de sete cabeças. Ontem mesmo [domingo, 18] tinha um monte de gente do Rio de Janeiro, que descobriram o Bar da Zilda de ouvir falar. Semana passada tinha gente do Ceará”, orgulha-se.

O Bar da Zilda é um pouquinho de Brasil, iá, ia: o que tem de simples e modesto, tem de generoso e acolhedor. Seus batuquelês reúnem desde o negro trabalhador da Piedade até a loirinha descolada da Praia do Canto. Ou o hardcore com camisa do Pennywise, o rasta com dreads até a cintura, o nerd, o hipster, o cobrador de ônibus, o “playboy” de camisa da Redley, o largadinho com bata indiana, a recepcionista negra de havaianas, a romântica de vestido florido. O Bar da Zilda é um ponto mágico para onde o morro desce e o asfalto sobe.

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