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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Depois de balear, aleijar e mutilar, Estado deixa vítima da masmorra morrer à míngua




José Rabelo



O suplício do jovem Alexandre Estevão Ramos chegou ao fim. Os médicos do Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes (Hucam) anunciaram, às 3h50 desta terça-feira (3), a morte do jovem de apenas 20 anos por choque séptico – infecção generalizada.

Na porta do Hucam, a aposentada Ruthléia Ramos, 65 anos, que criou o neto como um filho, continha as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto, enquanto lamentava a perda anunciada. “Ele estava muito caidinho. Ultimamente ele tossia fraquinho e mal dava para ouvir a sua voz. Ele não tinha nem força para falar”, conta a avó, que é amparada pela presidente da Associação de Mães e Familiares Vítimas da Violência, Maria das Graças Nacort, que acompanhou o périplo de Alexandre desde o dia em que soube que ele estava abandonado na Unidade de Saúde Prisional, no Complexo de Viana, com uma grave infecção que ameaçava suas pernas.

Maria das Graças Nacort, que já “desfilou” com cadáveres de presos executados nas prisões capixabas pelo Centro de Vitória, em protesto, não teve sequer coragem de ver o corpo de Alexandre. “É muito dolorido para mim. Acompanhei o sofrimento deste menino desde o início. Sei exatamente o que ele e a família passaram. Eu também já perdi um filho e conheço muito bem essa dor. O que mais me revolta nesta hora é saber que o Estado simplesmente abandonou o rapaz. Deixaram-no morrer à míngua. É muito descaso, muita negligência”, desabafa a militante.

A mãe biológica de Alexandre pouco falou. Bastante deprimida, ela admitiu que não conviveu muito com o filho. “Quem criou ele foi a avó, mas eu sempre vinha visitá-lo. Meu filho não precisava passar por todo esse sofrimento”.

O sofrimento de Alexandre começou exatamente no dia 18 de março de 2010. Ele foi baleado, nas costas, pela polícia, no Morro da Piedade. Segundo a família, após balear o jovem, a polícia o deixou sangrando numa pedra por mais de três horas, sem socorro. “Se ele se mexesse, ele caía morro abaixo”, conta Ruthléia.

Os moradores do bairro tiveram que apelar para uma equipe de televisão, que foi ao local para registrar o descaso da polícia. Só depois disso o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) apareceu e ele foi removido para o Hospital São Lucas, onde permaneceu internado por dois meses. Em seguida, foi transferido para o Hospital dos Ferroviários, em Vila Velha. Depois da alta médica foi recolhido para a Penitenciária de Segurança Máxima I (PSMA-I), em Viana.

Nesse período, Ruthléia sequer receba informações sobre o paradeiro do neto, que para o Estado não passava de mais um detento envolvido com o tráfico de drogas. Com a ajuda da Amafavv, a avó descobriu que o neto fora transferido para Viana e que estava paraplégico.

A própria Maria das Graças redigiu o pedido de prisão domiciliar de Alexandre, que aparentemente apresenta infecção generalizada na enfermaria da PSMA-I. A família, percebendo que a situação era grave, queria que o jovem recebesse tratamento especializado para depois ficar sob os cuidados dos familiares em casa.

Maria das Graças Nacort resume o tratamento desumano que era oferecido a Alexandre durante o período em que ficou internado na Unidade de Saúde Prisional de Viana. “Ele ficava na enfermaria. Como está paraplégico, usava fraldas geriátricas que não eram trocadas com a frequência necessária. Acho que foi assim que ele pegou a bactéria que passou a comê-lo vivo”, desconfia.

A militante, apesar de não ser médica, não estava exagerando. Quando a situação chegou ao limite, o jovem foi removido para o Hospital São Lucas para uma cirurgia de emergência. Era imperativo que os médicos amputassem as duas pernas para evitar que a infecção generalizada tomasse conta do resto do corpo de Alexandre.

Em setembro de 2010, o negro, outrora vistoso, que tinha mais de 1,80 metros, ficou reduzido a um tronco com pouco mais de meio metro após a amputação, que quase o levou a morte. Contam os familiares que Alexandre chegou a receber 26 bolsas de sangue durante a cirurgia.

Depois de balear o jovem pelas costas, durante todo o período em que esteve sob a custódia do Estado, Alexandre teve diagnosticada a paraplegia e contraiu a bactéria que provocou a infecção generalizada que sacrificou as suas duas pernas. O Estado, que deveria zelar pela integridade física do reeducando, mais uma vez, havia falhado.

Sem mais nada a fazer, a Justiça determinou e a Secretaria de Justiça concordou em devolver Alexandre para a família, ou o que sobrou dele. Sem receber qualquer assistência do Estado, a família recebeu de volta um sequelado das masmorras.

Logo no início, para tentar tornar menos traumático o retorno do neto para casa, Ruthléia alugou uma casa de quatro cômodos por R$ 280 mensais no Planalto Serrano, na Serra. Ela, que morava no Morro da Piedade, sabia que o acesso para o neto era inviável. Sem condições, a aposentada de 65 anos, passou a fazer faxinas para pagar o aluguel da “nova” casa.

Para a família, foi difícil trocar a Piedade, com o Centro da cidade à soleira da porta, por um bairro nos arrabaldes de Serra. “Mas não tinha outro jeito naquele momento. Como iríamos cuidar do Alexandre no alto daquele morro”, pergunta Ruth.

Em dezembro do ano passado Ruthléia, sobrecarregada com a distância e com o valor do aluguel, resolveu, mesmo prevendo dificuldades, trazer o neto de volta para Piedade. A cada dia mais debilitado e ainda sem nenhuma assistência do Estado, Alexandre definhava no “cárcere domiciliar” cada dia mais moribundo. A avô sabia que estava perdendo o neto aos poucos sem poder fazer nada para reverter a situação.

No último dia 15, data da posse do presidente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), Pedro Valls Feu Rosa, a presidente da Amafavv narrou ao desembargador, que já conhecia o caso, o drama de Alexandre.

No dia seguinte à posse, Pedro Valls designou uma equipe do TJES para acompanhar Maria das Graças à casa de Alexandre. Horrorizados com o que viram, os funcionários do Tribunal reportaram os fatos ao presidente do TJES, que pediu a internação urgente do jovem.

Dez dias depois da visita, Alexandre deu entrada no Hospital Adalto Botelho, em Cariacica, onde permaneceu por dois dias. O médico Eduardo Bellido Filho, que atendeu o jovem na emergência, diante da gravidade do quadro, requereu a transferência do paciente para um hospital com mais recursos. “O estado dele era muito grave. Adotamos algumas medidas imediatas para a manutenção da vida do paciente. Ele apresentava um aparente quadro de choque séptico. Apresentava sinais sistêmicos, que repercutiam em outros órgãos, que já estavam comprometidos. O paciente estava sonolento, com febre, pressão baixa e respiração difícil. Naquele momento, as chances de sobrevivência eram pequenas”, admitiu o médico, alegando que não podia dar mais detalhes porque não conhecia o histórico do paciente.

Na madrugada da última quinta (29), Alexandre foi transferido para o Hucam. O jovem de 20 anos foi colocado em uma sala de emergência, onde permaneceu sedado até a madrugada desta terça (3), quando foi decretada a sua morte.

Enquanto os familiares aguardavam a liberação do corpo na porta do hospital para o Departamento Médico Legal (DML), uma assistente social da Sejus ligou para Maria das Graças Nacort. Pediu para a militante dar um recado à família de Alexandre. Ela queria tranqüiliza-los que já estava tudo arranjado para o enterro do jovem, que o Estado iria cuidar de tudo.

Minutos depois, a assistente social do Hucam, após receber um telefonema da assistente social da Sejus, informou a família quais seriam os procedimentos adotados para acionar o serviço funerário gratuito via prefeitura de Vitória. Ela deixou claro que esse era um direito adquirido pelo cidadão. Em outras palavras, ela quis dizer que, independente de a Sejus interceder, o jovem Alexandre teria o funeral assegurado pela prefeitura. O mínimo para quem viveu menos de 20 anos, foi baleado pela PM, mutilado, abandonado e finalmente morto pelo Estado.

Nesta terça (3), o governo anunciou o menor número de homicídios dos últimos 14 anos: 48 assassinatos por 100 mil habitantes. Com o levantamento tão preciso na mão, deixamos para o governo decidir o ano que será contabilizado o homicídio de Alexandre Estevão Romão. Afinal, o jovem negro, morador de um bairro pobre de Vitória, começou a ser morto em março de 2010, embora sua morte tenha sido decretada oficialmente há algumas horas.

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