José Rabelo
Foto capa: Foto: CRF

A Inspeção, coordenada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, foi realizada em setembro deste ano. A ação, que envolveu os atuais 20 conselhos regionais de psicologia, simultaneamente em 25 estados e no Distrito Federal, inspecionou 68 unidades de recuperação de dependentes: 19 na Região Nordeste, 14 na Centro-Oeste, 13 na Norte, 12 na Sudeste e 10 na Sul. No Espírito Santo, a inspeção foi acompanhada pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP16), cuja presidente é Andréa Nascimento.
Segundo Andréa, o relatório chocou e incomodou governos e a sociedade, que preferem acompanhar o problema à distância. O problema das drogas, sobretudo o crack, que é considerado uma epidemia, afeta hoje quase que a totalidade das cidades brasileiras, tanto os grandes aglomerados urbanos como as outrora pacatas cidades do interior.
Entre outras considerações, o relatório lançou luz sobre territórios poucos conhecidos pela sociedade, as chamadas comunidades terapêuticas, iniciativas da sociedade civil, com pouca ou nenhuma regulação pública e nas quais se desenvolvem práticas que são objeto de denúncias de violação de direitos humanos.
O relatório, avisa o CRF, pretende evidenciar questões, convocar à reflexão e exigir uma tomada de posição por parte do Estado e da sociedade brasileira.
O documento registra a ocorrência de violação de direitos humanos nas entidades inspecionadas, que se confirma como regra. Diz um trecho do documento. “Há claros indícios de violação de direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos internos. Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o anti-HIV − exigência esta inconstitucional −, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas em todos os lugares. Percebe-se que a adoção dessas estratégias, no conjunto ou em parte, compõe o leque das opções terapêuticas adotadas por tais práticas sociais”, alerta o relatório.
Se o problema dos dependentes de drogas é grave atrás dos muros, como mostra o relatório, ganha contornos ainda mais chocantes nas ruas, aos olhos da sociedade.
Adormecidos frente ao problema, boa parte dos cidadãos de classe média alta, moradores da Praia do Canto (Vitória), de Ipanema (Rio de Janeiro), dos Jardins (São Paulo) ou de qualquer outro bairro nobre dos grandes centros urbanos - que pagam em dia seus impostos e já acreditam cumprir seu papel social contribuindo anualmente para o Criança Esperança ou para qualquer outra obra de caridade -, não querem, logicamente, topar com um “bando de zumbis” pitando cachimbos de crack na porta de suas casas. A cena, além de repugnante, é assustadora. Eles já leram em uma dessas revistas semanais, que o usuário de crack, quando está na “nóia” (expressão derivada de paranóia), é capaz de cometer “loucuras”, como agredir, assaltar e até matar. Tudo para conseguir fumar mais uma pedra. É a epidemia do crack batendo à porta da classe média.
“A sociedade é preconceituosa. Você não quer ver usuários de drogas na porta de sua casa. O ser humano quer o belo. Ninguém quer ver a desgraça, o sofrimento. É por isso que a sociedade tem tanta dificuldade para lidar com o problema”, avalia Andréa Nascimento.

Itinerantes, elas somem com a mesma velocidade que reaparecem. Quando a pressão política aumenta e a sociedade “grita”, as cracolândias são demovidas como entulhos humanos. Depois de alguns dias ou semanas, elas ressurgem, do nada, em outro ponto qualquer da cidade: seja na marquise de um prédio abandonado, no vão de uma ponte ou numa praça esquecida que já perdeu faz tempo sua função de espaço público.
Inquirida sobre as cracolândias, a opinião pública, rica e pobre, é quase unânime: é favorável a internação coercitiva dos usuários. Na verdade, o inconsciente coletivo é partidário da faxina social. Eles preferem “varrer” o problema para debaixo do tapete, mesmo sabendo que o sofrimento vai continuar do outro lado do muro.
A psicóloga, em princípio, discorda de alguns colegas e “especialistas de plantão” que defendem a internação compulsória. “Não é o caso de colocarmos a questão no binômio do contra ou a favor. É preciso arrazoar”. Ela acrescenta que as pessoas que defendem essa posição normalmente justificam que o direito do coletivo também tem de ser assegurado. “Mas de que coletivo estamos falando? Quer dizer que nós somos as pessoas do bem?”, questiona. A psicóloga disse ainda que a internação compulsória é uma doutrina higienista. “Em vez enfrentarmos o problema, preferimos mandá-lo pra bem longe”.
O relatório do CRF também condena a internação compulsório, como fica patente neste trecho do documento: “Outra face da questão surge mesmo onde a internação compulsória ou involuntária não é admitida. Pôde-se perceber, em muitos desses lugares, uma contradição clara entre discurso e prática, já que a decisão de permanecer ou não, de dar continuidade ou interromper a internação, é intermediada pela instituição nem sempre de forma respeitosa. As estratégias de convencimento apostam, quase sempre, no aumento da fragilidade e no recurso ao medo e à intimidação para dissuadir o interno de sua decisão. Uma estratégia que aposta, portanto, na submissão e não na capacidade de decisão real, no consentimento com o tratamento, como o fazem os serviços substitutivos de saúde mental, no respeito à cidadania e à subjetividade dos sujeitos (...)”.
Alternativas
A presidente do CRP16 lembrou que existem hoje alternativas bem-sucedidas que estão sendo desenvolvidas em outros estados. Ela citou o exemplo do Consultório de Rua, em Belo Horizonte, que vem colhendo bons resultados. São iniciativas alternativas à internação que muitas vezes, pela realidade das comunidades terapêuticas expostas no relatório, podem ser mais eficientes e eficazes.
O Consultório de Rua, explica a psicóloga, funciona como um atendimento extramuros dirigido aos usuários de drogas que vivem em condições de maior vulnerabilidade social. O público-alvo é composto de pessoas que estão distanciadas da rede de serviços de saúde e resistem em aceitar encaminhamento.
A iniciativa, segundo Andréa Nascimento, leva dispositivos clínico-comunitários aos usuários em seus próprios ambientes. É proposta do Consultório de Rua promover a acessibilidade a serviços da rede institucionalizada, a assistência integral e a promoção de laços sociais para os usuários em situação de exclusão social, possibilitando um espaço concreto do exercício de direitos e cidadania. “Isso é de fato trabalho de cidadania, que exige tempo e recursos. É muito diferente do que você sair recolhendo pessoas nas ruas e jogando-as em qualquer lugar”, adverte.
Comunidades terapêuticas
No Espírito Santo foi inspecionada uma única instituição, a Casa da Paz, em Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado. A presidente do CRP16 explicou que o Conselho não “tinha pernas” para inspecionar outras comunidades terapêuticas no Estado. "Temos apenas uma equipe para fazer o trabalho", justificou.
Perto de outras entidades inspecionadas, a capixaba não está entre as que apresentam os problemas mais graves. O relatório, no entanto, sugere que a Casa da Paz reveja alguns procedimentos. A exemplo de outras instituições, a Casa da Paz monitora as conversas telefônicas e as visitas de familiares dos dependentes; a prática sexual é proibida; alguns internos se queixaram de problemas de saúde. Há também o relato de uma morte por homicídio dentro da Casa e uma denúncia de cárcere privado.

Ela acrescenta que, nas comunidades que não dispõem de profissionais de psicologia, o CRP e outros conselhos de saúde costumam acompanhar a visita, que fica a cargo do Conselho Estadual ou Municipal de Direitos Humanos. A presidente do CRP reconhece que o trabalho do MPE tem sido muito importante nas fiscalizações. Mas ela admite que, por falta de pessoal, as vistorias geralmente são feitas somente a partir de denúncias.
A psicóloga esclarece que o CRP está iniciado um trabalho para mapear todas as comunidades terapêuticas que atuam no Estado. “Queremos saber quantos são e onde estão estas comunidades”. Essa demanda, segundo ela, surgiu após o Relatório de Inspeção e será executada por todos os CRPs.
Andréa Nascimento afirma que a inspeção teve um impacto muito forte na sociedade e no governo. Ela disse que o relatório repercutiu no Ministério da Saúde, que já reagiu. “O relatório criou um fato político importante. O Ministério da Saúde, inclusive, já chamou os conselhos para uma conversa”.
A Inspeção, que está na sua quarta edição, tem o compromisso de assegurar os direitos humanos nas chamadas unidades de privação de liberdade. Os relatórios pretendem responder as seguintes perguntas: “O que têm em comum as unidades psiquiátricas (2004), as unidades de cumprimento de medidas socioeducativas (2006), as instituições de longa permanência de idosos (2007) e as atuais unidades de acolhimento (ou recolhimento?) de usuários de álcool e outras drogas? Que liberdades são privadas e quais direitos são violados no cotidiano de suas práticas?”.
Andréa ressalta que a inspeção veio no momento em que o governo federal resolveu liberar mais recursos para as comunidades terapêuticas que trabalham com a recuperação de dependentes químicos. A presidente destaca que esses que esses recursos são liberados, muitas vezes, sem nenhum critério. “Sabemos que existem muitas comunidades terapêuticas que recebem repasses do SUS [Sistema Único de Saúde], mas que não têm um único profissional da área de saúde atuando no local. Os critérios precisam ser discutidos com os movimentos sociais”, sugere.
Os casos exemplificados no relatório ratificam a fala da psicóloga. “Não são poucas as instituições que recebem recursos públicos ou, ainda, que são reconhecidas como instituições de “utilidade pública”, ficando, portanto, isentas do pagamento de impostos, um modo de subvenção pública que tem sido objeto de denúncias. Um número significativo dessas instituições mantém convênios com diferentes órgãos públicos. E isto impõe ao Estado a tarefa da fiscalização quanto ao rigor da aplicação dos referidos recursos, mas, sobretudo, quanto à vigilância pela proteção e defesa dos direitos sociais e humanos dos assistidos. A realidade encontrada exige reposicionamento do Estado brasileiro”, alerta o relatório.
A psicóloga, assim como outros estudiosos no assunto, compartilha da ideia de que um protocolo básico deve regular a atividade das comunidades terapêuticas. Ela adverte, porém, que essa discussão, para ser legítima, deve envolver a sociedade civil organizada.
http://www.seculodiario.com.br/exibir_not.asp?id=31292
Leia o relatório: http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/noticiaDocumentos/Relatorio_Inspecao_Direitos_Humanos.pdf
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